Episode 108

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29th Nov 2024

A POLÍCIA PRECISA MUDAR? REFLEXÕES SOBRE RACISMO E POLICIAMENTO NO BRASIL.

A discussão sobre as questões raciais na segurança pública no Brasil é complexa e multifacetada, especialmente quando se trata do policiamento ostensivo e suas consequências para a população negra. A pesquisadora Jacqueline Sinhoretto nos esclarece a forma como, ao longo de sua pesquisa, os policiais percebem seu papel em uma sociedade marcada por desigualdades raciais, revelando um bloqueio significativo em respeito à polícia como um ator ativo na perpetuação da desigualdade racial. A resistência em debater esses temas dentro das corporações policiais denota a dificuldade em confrontar o racismo institucional, mesmo que os indivíduos dentro da força não se vejam como racistas. A convidada enfatiza que a falta de debate e reconhecimento sobre esses aspectos contribui para a continuidade de práticas discriminatórias, refletindo uma cultura que evita a autoanálise e a responsabilização. Saiba mais em www.hextramurospodcast.com!

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Transcript
ANFITRIÃO:

Honoráveis Ouvintes! Sejam muito bem-vindos a mais um episódio do Hextramuros! Sou Washington Clark dos Santos, seu anfitrião! No conteúdo de hoje, na sequência da Série "Questões Raciais na Segurança Pública e na Justiça Criminal no Brasil", concluo a trilogia com a Pesquisadora Jacqueline Sinhoretto, que liderou um estudo fundamental com foco no policiamento ostensivo em cidades de Minas Gerais e São Paulo, sobre as disparidades no tratamento policial entre negros e não-negros.

Retomando nossa conversa, Professora; de que maneira os policiais enxergam o papel da polícia numa sociedade marcada pela desigualdade racial e como isso influencia suas práticas no cotidiano das operações de policiamento ostensivo?

CONVIDADA:

Essa é uma das perguntas mais sensíveis do meu trabalho de investigação! É uma das percepções mais sensíveis que eu tive! É uma das coisas mais difíceis de analisar, porque, como que eles enxergam o papel da polícia nessa sociedade tão desigual? O problema é que os policiais têm uma dificuldade de perceber como que esses procedimentos de base estatística dos mapas criminológicos, os mapas de calor e todo esse aparato tecnológico da polícia e toda essa coisa vai levá-los a ter uma ação mais rigorosa com a população negra do que comumente eles têm com a população branca! A escolha dos crimes, a escolha dos locais, a percepção que eles têm da corporalidade negra, enfim, tudo isso vai influenciar as práticas deles na operação! E eles têm muita dificuldade de reconhecer a polícia como um ator ativo da desigualdade racial no país! Há uma dificuldade muito grande, um bloqueio muito grande de falar sobre isso, de reconhecer isso. As próprias corporações evitam esse debate ao máximo e dificilmente se abrem para fazer esse tipo de investigação. Como eu falei, em algum momento a universidade se abre para fazer essa investigação, cria um programa de Ação Afirmativa e diz: "olha! A partir de agora, 50% dos nossos estudantes vão ser oriundos de escola pública e, desses 50%, 30% vão ser negros, pretos e pardos e, agora, a universidade vai ser assim! Vai ser um espaço aberto para pessoas pobres e entre as pessoas pobres, para as pessoas negras em primeiro lugar"! Então, a universidade, que foi historicamente uma instituição racista, em algum momento ela começa a abrir suas entranhas, começa a questionar os seus procedimentos e começa a fazer um debate interno e estabelecer políticas de Ação Afirmativa para mudar isso! Mas, na medida em que as organizações policiais têm uma recusa de fazer esse debate- eles têm uma recusa interna, inclusive a debater os procedimentos da polícia, essas técnicas de policiamento-, são instituições internamente autoritárias, fica difícil enxergar o papel da própria polícia na produção dessa desigualdade, porque esse papel, muitas vezes, não está na mente do policial, mas está na forma como esse policial é ou não preparado para agir na rua e nas ferramentas que ele tem ou não tem à sua disposição para poder agir numa situação de tensão, para poder agir numa situação de abordagem que é propícia para que esses preconceitos sociais que povoam a cabeça pela maior parte das pessoas acaba interferindo na ação dele, na medida em que não existe uma educação policial para combater esses estereótipos e esses preconceitos e, esses estereótipos e preconceitos acabam se reproduzindo! Mas, é curioso como que os policiais e as organizações policiais têm muita recusa de debater esse tema e, na medida em que eles recusam debater esse tema, eles também recusam essa interlocução com a sociedade civil, com a academia, com as organizações de luta negra, com as universidades e tal. Recusar debater como é que o racismo institucional vai se reproduzindo, mesmo que os indivíduos policiais não se enxerguem como racistas. Então, essa ausência de debate é uma das formas pelas quais a desigualdade racial vai se perpetuando pelos recursos do próprio policiamento, mas, existe uma dificuldade de eles reconhecerem isso! Eles falam: "não! A desigualdade é social! O racismo é estrutural! Ele não é produzido pela polícia!" Em que pese a existência de um racismo estrutural, também existe o racismo institucional operando! Também, existem essas formas pelas quais a gente está conversando aqui, que também produzem desigualdade de tratamento e elas precisam entrar na pauta! Elas precisam entrar no debate sobre o direito à segurança no Brasil e as condições em que os profissionais policiais efetivamente trabalham no seu cotidiano.

ANFITRIÃO:

De que maneira as tecnologias de vigilância podem contribuir para aumentar a transparência e a prestação de contas das forças policiais em relação ao tratamento de minorias, especialmente negros?

CONVIDADA:

Essa é uma ótima pergunta! Eu fui para o Canadá estudar esse tema e lá, enfim, existe esse problema, também, do tratamento desigual da polícia em relação aos grupos racializados! E há um problema mais grave em relação às pessoas de origem do Oriente Médio, até, do que os negros, embora exista essa desproporção em relação aos negros, mas ela é ainda maior em relação às pessoas do Oriente Médio. Então, eles começaram primeiro fazendo as pesquisas, monitorando as situações de abordagem e os policiais tendo que fazer anotações sobre as abordagens, as características das pessoas e tal. E teve um chefe de polícia, negro, que começou a criar todo um programa antirracista na Polícia de Ottawa, no Canadá, que é a capital do país, e uma série de metas foram colocadas para essa polícia. Metas em termos da composição do próprio corpo policial, de contratação de negros, promoção de negros, mulheres, pessoas LGBT, enfim, toda uma mudança na composição do próprio corpo de polícia e da ascensão desses profissionais aos cargos de cúpula da polícia. Então, toda uma reforma interna e eles colocaram essas metas também para reduzir as desigualdades. Para reduzir as abordagens diferenciais entre os grupos raciais, a Polícia de Ottawa teve que reduzir o número global de abordagens! Eles tiveram que reduzir 35% do número total de abordagens que eles faziam, tirando o foco da atividade policial, da abordagem em si, e colocando mais o foco da atividade policial em relações comunitárias e outras estratégias de relação da polícia com a sociedade, para tirar um pouco o peso das abordagens e, com isso, reduzir o número de abordagens. Eles passaram a utilizar as próprias tecnologias de registros de dados não apenas para monitorar as zonas quentes, os mapas de calor das ocorrências criminais, mas também das situações em que os policiais mais faziam abordagens a pessoas racializadas e tentar diminuir, então, essas situações. E, com isso, eles puderam obter uma boa redução dessa disparidade! Na verdade, eles passaram a fazer menos abordagens e abordagens mais focadas para as situações em que os policiais conseguiam descrever

objetivamente porque estavam parando aquela pessoa, fazendo abordagens mais direcionadas, mais qualificadas, mais embasadas! E isso, de fato, reduziu o número de pessoas negras, de pessoas oriundas do Oriente Médio que foram abordadas, mantendo de certa forma o número de pessoas brancas e reduzindo das outras proporções. Não teve nenhuma alteração na percepção de segurança da sociedade, da cidade, não aconteceram mais crimes, nada disso! Só pelo fato de os policiais terem que justificar melhor porque desconfiaram daquela pessoa e fizeram aquela abordagem! Por exemplo, a abordagem de veículos: eles passaram a ter que justificar um pouco e, sempre, fazer essa análise do número de multas aplicadas e do número de abordagens. Aquelas abordagens que não incorriam em multas, sendo consideradas um pouco inadequadas. Diminuia as situações em que você pára um carro só por parar ou pára uma pessoa só por parar! Com isso, eles conseguiram usar as ferramentas estatísticas de avaliação do policiamento não contra a população racializada, mas a favor! E uma outra coisa que eles estavam implementando, mas que enfim, acabou sendo interrompido com o problema da pandemia e com outras questões políticas que aconteceram lá na chefia de polícia que deslocaram um pouco essa preocupação, mas, eles estavam desenvolvendo uma linguagem de Inteligência Artificial para ler situações das câmeras corporais dos policiais para identificar situações em que os policiais negros estivessem abordando pessoas brancas ou o contrário; policiais brancos abordando pessoas negras ou pessoas do Oriente Médio -pessoas racializadas-. E, toda vez que havia uma escalada do uso da força, quer dizer, um aumento do volume da voz ou a mão no revólver, ou alguma coisa assim, a supervisão do policial que estava no escritório e não na rua, recebia um alerta e passava a monitorar em tempo real. Eles estavam desenvolvendo esse programa e eu creio que já fizeram testes em relação a isso. Talvez, ainda, não esteja funcionando em larga escala, mas é um dos usos da tecnologia e da Inteligência Artificial para reduzir a disparidade. Toda vez que tem um contato interracial ali, seja do policial negro com pessoas brancas ou o policial branco com pessoas racializadas, há uma vigilância maior e os supervisores passam a monitorar essa em tempo real, para tentar transmitir comandos para o policial que está nessa situação ou, para ele se acalmar, ou para ele prestar atenção, monitorar um pouco melhor essas situações para evitar a escalada do uso da força. São opções que foram desenvolvidas por outros corpos policiais para tentar reduzir essa, vamos dizer assim, solidão do policial na situação da suspeição e, ao mesmo tempo, aumentar o controle através de dados, através de mapas, através de mecanismos, fazendo esse debate interno, esse feedback -"vamos analisar os dados que a gente produz." "Vamos analisar o que a gente tem produzido em termos de segurança pública e como que estão os grupos racializados em relação à ação policial." "É possível melhorar isso?"- trazendo então um debate interno para as organizações policiais e aumentando a consciência do policial em relação ao seu próprio comportamento quando está diante de um grupo racializado. Não é só, vamos dizer, a tecnologia de mecanismos de softwares, de inteligência policial, mas, na verdade, é a educação policial continuada também, surtindo esse efeito de despertar naquele profissional um pouco do controle dos seus próprios vieses, mas, também, aumentando a supervisão dele para evitar esse tipo de abuso.

ANFITRIÃO:

Professora, caminhando para o final de nossa conversa, agradeço imensamente pela preciosa colaboração e deixo este espaço para suas considerações finais. Fraterno abraço!

CONVIDADA:

Eu que agradeço a atenção e o convite! Espero que esses resultados de pesquisa e essa análise que a gente faz sirvam para que as pessoas se sensibilizem para o problema! Para que as pessoas entendam que não se trata de uma crítica gratuita à polícia e, também, que não se trata de uma demonização da polícia, mas, que se trata de um objetivo comum da universidade, da sociedade civil e de muitos agentes policiais, que é melhorar a qualidade da segurança pública, que é trazer mais equidade no exercício dessa segurança, que é cuidar mais, tanto do policial que está vivendo uma rotina de trabalho muito estressante, muito conflitiva, que se sente muitas vezes muito sozinho nessa atividade policial e, de outro lado, escutando as demandas de uma população que não se sente protegida pela forma como a polícia brasileira realiza o policiamento! Nós precisamos pensar em alternativas a isso! Nós precisamos pensar em como tornar a nossa segurança pública mais debatida, mais humana nesse sentido. No sentido de observar que a gente não está lidando com monstros nem de um lado e nem do outro! De todos os lados existem cidadãos que precisam ter a sua cidadania respeitada e que merecem que a nossa segurança pública tenha uma qualidade melhor! Isso, do lado da população negra, do lado da população indígena, mas, também, do lado do trabalhador policial que merece trabalhar numa organização mais preparada para lidar com os conflitos sociais!

ANFITRIÃO:

Honoráveis Ouvintes! Este foi mais um episódio do Hextramuros! No conteúdo de hoje, concluímos a trilogia com a renomada Professora Jacqueline Sinhoretto. Sou Washington Clark dos Santos, seu anfitrião, apresentando a Série "Questões Raciais na Segurança Pública e Justiça Criminal no Brasil"! Acesse o nosso website e saiba mais sobre este conteúdo! Será um prazer ter a sua colaboração! Pela sua audiência, muito obrigado e até a próxima!

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About the Podcast

Hextramuros Podcast
Vozes conectando propósitos, valores e soluções.
Ambiente para narrativas, diálogos e entrevistas com operadores, pensadores e gestores de instituições de segurança pública, no intuito de estabelecer e/ou ampliar a conexão com os fornecedores de soluções, produtos e serviços direcionados à área.
Trata-se, também, de espaço em que este subscritor, lastreado na vivência profissional e experiência amealhada nas jornadas no serviço público, busca conduzir (re)encontros, promover ideias e construir cenários para a aproximação entre a academia, a indústria e as forças de segurança.

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Washington Clark Santos

Produtor e Anfitrião.
Foi servidor público do estado de Minas Gerais entre 1984 e 1988, atuando como Soldado da Polícia Militar e Detetive da Polícia Civil.
Como Agente de Polícia Federal, foi lotado no Mato Grosso e em Minas Gerais, entre 1988 e 2005, ano em que tomou posse como Delegado de Polícia Federal, cargo no qual foi lotado em Mato Grosso - DELINST -, Distrito Federal - SEEC/ANP -, e MG.
Cedido ao Ministério da Justiça, foi Diretor da Penitenciária Federal de Campo Grande/MS, de 2009 a 2011, Coordenador Geral de Inteligência Penitenciária, do Sistema Penitenciário Federal, de 2011 a 2013.
Atuou como Coordenador Geral de Tecnologia da Informação da PF, entre 2013 e 2015, ano em que retornou para a Superintendência Regional em Minas Gerais, se aposentando em fevereiro de 2016. No mesmo ano, iniciou jornada na Subsecretaria de Segurança Prisional, na SEAP/MG, onde permaneceu até janeiro de 2019, ano em que assumiu a Diretoria de Inteligência Penitenciária do DEPEN/MJSP. De novembro de 2020 a setembro de 2022, cumpriu missão na Secretaria Especial de Previdência e Trabalho, no Ministério da Economia e, posteriormente, no Ministério do Trabalho e Previdência.
A partir de janeiro de 2023, atua na iniciativa privada, como consultor e assessor empresarial, nos segmentos de Inteligência, Segurança Pública e Tecnologia.