Episode 123

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14th Mar 2025

FÉ E CRIMINALIDADE: A INFLUÊNCIA DA RELIGIÃO NAS COMUNIDADES CARIOCAS. BLOCO 2

A interação entre criminalidade e religiosidade nas comunidades do Rio de Janeiro é o tema central do da Série “FÉ E CRIMINALIDADE”! Na conclusão da entrevista com o Professor José Cláudio Sousa Alves, o Hextramuros explora como as milícias influenciam o campo religioso, destacando a resistência que algumas comunidades religiosas apresentam a essa influência. O convidado enfatiza que o poder dentro dessas comunidades não é monolítico, permitindo contestações e práticas de resistência, mesmo diante das consequências que podem advir. Ao longo da conversa, fica evidente que a relação entre estruturas de poder armadas, religiosas e políticas se consolidou de tal forma que desafia a busca por uma mudança significativa. A esperança reside na capacidade de denúncia e na construção de uma nova política que enfrente essa realidade complexa e multifacetada. Confira e saiba mais em nosso website!

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Transcript
Washington Clark dos Santos:

Honoráveis Ouvintes! Sejam muito bem-vindos a mais um episódio do Hextramuros! Sou Washington Clark dos Santos, seu anfitrião! No conteúdo de hoje, retorno à entrevista com o professor José Cláudio Sousa Alves, concluindo nossa abordagem sobre a interação criminalidade-religiosidade em comunidades da cidade do Rio de Janeiro. Retomando o nosso diálogo, professor, diante ainda das conclusões de suas pesquisas acerca da influência das milícias no campo religioso, existe resistência por parte das comunidades religiosas a essa influência? De que forma ela ocorre e quais os seus impactos?

José Cláudio Sousa Alves:

O poder dentro das comunidades, essencialmente evangélicas, nunca é uma coisa inconteste, nunca é uma coisa de total hegemonia, um bloco que as pessoas se submetem por conta do poder, da influência, das conexões com o mundo político - câmaras de vereadores, prefeituras ou câmaras de deputados federais, estaduais, governo do estado. Isso é muito forte, tem muita influência, mas não significa um bloco monolítico. Então, sempre há margem para contestações. E as contestações são de diferentes ordens. Elas podem ser coisas mínimas, de não seguir, não acompanhar, não apoiar, ter resistência, tem falas diferenciadas, tem críticas, tem práticas que não vão seguir naquela direção do bloco mais hegemônico e fortalecido. Claro que quem faz uma oposição dentro das estruturas vai sofrer consequências! Eu já vi pastores, pastoras reclamarem em função de como elas são tratadas, das dificuldades, das várias formas que elas vão sentir, de tensionamentos, de crítica, de isolamento, de perda de interação com outros membros daquela estrutura religiosa. Tudo isso aparece! Então é uma disputa, na verdade. Há um interior de disputas dentro do universo religioso. Claro que a dimensão miliciana, como é muito forte, ela vai ter um atrativo muito maior, ela vai regular. O que antes era conseguido com muito mais esforço por parte da milícia, em termos, por exemplo, eleitoral - o voto daquela comunidade -. Antes, a milícia anotava o número dos títulos de eleitor, as sessões, as zonas onde as pessoas votavam e tentavam controlar isso diretamente. Com o passar do tempo e a manutenção de uma estrutura de poder numa comunidade dessas, nesses bairros, ao redor de comunidades religiosas, a estrutura de poder vai se consolidando, vai se fortalecendo. Quem se aproxima da estrutura miliciana recebe muitas benesses, muitos benefícios, resolve problemas, passa a ter trajetória de poder em ascensão. Essa permanência de um grupo armado por 10, 20, 30 anos numa localidade vai consolidar uma forma de poder que passa a ser inconteste e não precisa mais das mesmas formas de controle anteriores. Ela está consolidada! As pessoas querem se aproximar dessa estrutura, querem se beneficiar desse poder estabelecido ao longo do tempo! Então, é preciso ter muita essa atenção. Para você contestar uma estrutura de poder de grupo armado com conexões com uma estrutura de poder religioso, que passa necessariamente por conexões com estrutura de poder público, de prefeitura, de câmaras de vereadores, você vai sofrer impactos dessa estrutura sobre a sua vida! Há muitos relatos de assassinatos de jovens por essa estrutura; de como as investigações não vão ocorrer; como tudo isso vai ser escamoteado; abafado; escondido; como as famílias são ameaçadas; intimidadas! Como você estabelece uma lógica de terror, por exemplo, o maior patamar de terror hoje na Baixada são os desaparecimentos forçados, ou seja; você tem assassinatos e os corpos das vítimas não são encontrados! Eles são ocultados, escondidos, destruídos! Não há investigação sobre isso! Não há dados sobre isso! Não há registro sobre isso! É uma coisa desesperadora sobre essa comunidade o terror que elas vão viver! Quem está conectado com essa estrutura de poder político, com suas conexões com o mundo religioso e com o mundo do Estado, eles se beneficiam e vão impedir que haja investigação! Vão proteger as pessoas que cometem esses crimes! Então, tudo isso está muito conectado. Um membro da igreja vai discordar de todas essas conexões, essa estrutura, mas ele vai ter um limite para fazer isso, porque ele pode sofrer sanções muito duras na vida dele. Mas essas contestações existem. Existem no minúsculo, no pequeno. Às vezes são coisas muito tênues. Por exemplo, você aguarda em silêncio a sua história de perda de alguém, de desaparecimento pela violência de algum parente, algum ente querido. Você vai aguardando que os membros da estrutura de grupos armados ali presentes desapareçam e sejam mortos também! Então, tem uma temporalidade dessa estrutura armada. Assim que essas pessoas morrem - esses membros de grupos armados estão morrendo, desaparecendo - as pessoas que foram vítimas elas começam a falar mais, começam a trazer informações, começam a se movimentar de uma forma melhor, trazendo uma memória perdida. Isso é uma forma de contestação, isso existe! Você pode procurar criar uma rede de proteção para esses jovens, impedir que eles sejam mortos. Você pode deslocá-los para outra cidade, outro estado. Então, existe um conjunto de práticas. Você pode não aceitar a liderança inconteste de um líder religioso, de um obreiro, um pastor, ministro. Aí você vai construir uma crítica. Mas você tem que saber fazer isso. Mas, essa crítica existe! Ela está lá, colocada naquela comunidade! Então, isso é uma forma de contestação também! A resposta é nunca há algo absolutamente monolítica na sua forma de poder, de dominação hegemônica, total, absoluta! Não existe isso! Sempre haverá essa disputa dentro da estrutura de poder armado com suas conexões com o mundo religioso.

Washington Clark dos Santos:

Professor, suas pesquisas propõem uma análise da relação entre religião e crime a partir de uma perspectiva histórica e social. Com base nessa perspectiva, acreditas na possibilidade de o Estado, juntamente com a sociedade civil e a comunidade religiosa, intervir para coibir o uso da fé como fachada para o crime?

José Cláudio Sousa Alves:

O que nos move sempre é essa esperança da possibilidade de você limitar essa estrutura de poder e de conexões entre grupos armados e estrutura religiosa, sempre com a mediação da estrutura do Estado. Essa é a esperança! A esperança é você trazer informações, você denunciar esquemas, você limitar o poder dessas pessoas! Na prática, a gente não vê muito isso! Concretamente, o que se assiste hoje na Baixada e em outros lugares é o contrário! É o crescimento dessa estrutura de poder, porque ela é cada vez mais forte! Ela não vai simplesmente ser detida! Os grupos políticos, os grupos religiosos lançam a mão dela para se potencializarem e terem mais ganhos. Então, tudo isso está se movimentando, tudo isso está aparecendo nesse universo de crescimento, de projeção! Grupos políticos colocam dentro do seu quadro gente ligada à estrutura religiosa, - evangélica principalmente -, mas que vão fazer conexões com a estrutura de grupos armados que fazem parte da estrutura de poder político naquela prefeitura, naquela câmara de vereadores e, pelo que eu tenho acompanhado ao longo do tempo, isso tem se ampliado! É uma área de disputa! Não é monolítico, não é fechado, mas é cada vez mais uma disputa mais difícil, mais restrita, mais limitada em função do fortalecimento ao longo do tempo dessa estrutura de poder! A nossa esperança de quem discute, debate isso e que dá informações sobre isso é uma esperança de que isso mude, por isso é uma tentativa de resistência mas, uma resistência, ao meu ver, cada vez mais tênue, mais frágil! Precisávamos fortalecer muito mais! Precisávamos fazer um debate muito mais forte e ter gente no campo político, principalmente, que confrontasse e que produzisse uma nova forma de fazer política diferenciada dessa que está crescendo entre nós nos últimos anos! Esse é o sonho nosso! De restringir, limitar, mas não é algo tão fácil! Isso tem sido assim ao longo de algum tempo já! Muitas notícias de gente denunciada por envolvimento com milícias, estruturas armadas que apoiaram o candidato, deram dinheiro, mas a gente não vê concretamente ações que mudem radicalmente esse perfil, esse universo! E o mundo religioso eu acho que acaba sendo acessado, sim, porque tem controle territorial. Quem controla território vai controlar também espaços religiosos! E então, você tem essas conexões que eu citei aqui ao longo da entrevista que vão se fortalecendo. Que mostram um poder mais consolidado ao longo do tempo.

Washington Clark dos Santos:

Caminhando para o final de nossa conversa, sou imensamente grato pela sua brilhante participação! Deixo este espaço para suas considerações finais. Fraterno abraço!

José Cláudio Sousa Alves:

O verso religioso aqui é bastante complexo e o campo religioso também é complexo! Eu me detive mais no mundo evangélico porque o mundo dentro do campo religioso hoje, o universo evangélico, está em expansão, está em crescimento! É uma religião que projeta lideranças. É uma religião que reconstrói projetos de vida. Pessoas que tinham suas vidas destruídas pelo desemprego, pela doença, pela dependência química, pelas separações familiares, por todas as formas que hoje atingem a vida das pessoas, o mundo evangélico foi capaz de dar resposta, principalmente o mundo pentecostal e neopentecostal, traz respostas no sentido de preservar pessoas, resgatar suas histórias, suas vidas, suas possibilidades de sobrevivência e isso é fundamental entender! É fundamental mergulhar nesse universo evangélico para entendê-lo melhor e para perceber, de fato, as suas potencialidades e interagir com elas. Contudo, esse mundo evangélico acaba se cruzando, se aproximando, se conectando com estruturas de grupos armados que convivem nessa realidade local, que também têm presença, que também trazem vantagens para aquelas pessoas que acessam essa estrutura. O mundo evangélico e o mundo miliciano, por exemplo, ou o mundo do tráfico, eles estão hoje dentro de uma sociedade periférica, marcada pela exclusão, marcada pela segregação, marcada pela falta de recurso, pela falta de possibilidades de sobrevivência onde o salário já não existe mais, porque as relações de emprego e de trabalho vêm se deteriorando, se degradando cada vez mais! Você tem um mundo “uberizado” e “youtubizado”, ou seja, um mundo do “precariado”, onde as pessoas estão com vínculos e metodologias de trabalho absolutamente vulneráveis e frágeis, onde você tem que lançar a mão de outros expedientes para sobreviver! Expedientes formais e informais! Legais e ilegais! O mundo do crime se expande nesse universo para poder dar sentido à vida dessas pessoas em periferias gigantescas, onde as pessoas estão trabalhando em diferentes formas ilegais que a gente possa imaginar, de práticas, ou informais ou absolutamente à margem de coisas que a gente possa compreender! São diferentes estratégias: você lança mão, inclusive, de políticas públicas para sobreviver e de relações interpessoais extremamente precárias e delicadas que possam te dar alguma possibilidade de sobrevivência nesse universo. Esse universo periférico precário, instável, vulnerável, frágil, esse é o grande universo de um capitalismo que diz essa é a nossa grande fronteira! É aqui que a gente vai ganhar mais! Eu vou reduzir essa proteção, essa segurança, esse espaço e vou fazer com que as pessoas agora transformem isso no normal! O normal agora da vida é isso. São essas relações. E isso vai para o mundo do empreendedorismo individual, empreendedorismo coletivo, vai para várias estratégias que estão ali colocadas. E nesse universo que é crescente dentro das periferias, dentro de um país como o nosso, com dimensões periféricas gigantescas, o mundo religioso e o mundo do crime são duas soluções! Eles não são algo que simplesmente é deturpado, é algo desviado, é algo falsificado, é algo que não deveria ser! Eles são o que deu certo! Eles são o mundo real nosso! Convivência nossa é com esse universo! Então, não adianta eu dizer que o nosso objetivo, que não foi alcançado, é a democracia e não a violência do crime! É a formalidade que tem que vencer! É o Estado! É a lei, são as regras, as normas de um Estado democrático de direito, que tem que prevalecer! E quando isso não prevalece, significa que nós não temos um Estado. Não é isso! O Estado, esse Estado de leis, de normas, de regras, de tudo isso que a gente consolidou no nosso imaginário ocidental como “O Estado”, ele convive nas suas entranhas com essa dinâmica criminal, informal, violenta, fora das leis! Ele convive com isso e essa convivência faz dessas dimensões ilegais, criminais e não legais e informais, transforma isso naquilo que é real, que é concreto, aquilo que existe, aquilo que se propaga, aquilo que dá a milhares e milhões de pessoas a sua sustentabilidade social e econômica e física, humana. Ou seja, nós temos que olhar para isso com menos idealismos e mais tentando entender como que tudo isso deu certo! Qual é a estrutura nossa política-econômica-social-cultural-criminal que gerou e gestou esse modelo e esse modelo que agora é acessado permanentemente pelo próprio capital, pelo próprio Estado, para se reproduzir - o capital se reproduz com essa exclusão, segregação, estigmatização, informalidade e precariedade! - Isso, hoje, é o universo! Esse não salário! Essas outras formas de ganho que você vai ter que desenvolver. Então, é preciso olhar para tudo isso como um grande conjunto de coisas que estão surgindo diante de nós para poder compreender que mundo é esse, que universo é esse! Nós estamos muito no mundo da formalidade, de nomes e formalidades, de leis e teorias, mas nós não temos muita capacidade de mergulhar no universo concreto dessas pessoas e entendê-los. Eu convivo, eu circulo nesses ambientes e consigo perceber essas nuances que se tornaram dimensões muito concretas da vida das pessoas. Nós precisamos fazer isso com muito mais capacidade para poder entender que mundo é esse? Que capitalismo é esse? Que igreja é essa? Que grupo armado é esse? Como que eles se interagem? Como que tudo isso faz parte de uma fronteira que se expande dentro do nosso país e fora do nosso país, é claro, no mundo como um todo, que é uma nova fronteira dessa civilização capitalista ocidental, cristã ou não cristã! Eu agradeço muito o convite e a possibilidade de estar falando com vocês. Espero que minhas reflexões possam contribuir. Um grande abraço para vocês!

Washington Clark dos Santos:

Honoráveis Ouvintes! Este foi mais um episódio do Hextramuros! Sou Washington Clark dos Santos, seu anfitrião! Neste conteúdo, finalizamos a conversa com o professor José Cláudio Souza Alves, abordando a conexão entre religiões e a criminalidade em comunidades do Rio de Janeiro. Acesse nosso website e saiba mais sobre este conteúdo nos links de pesquisa. Inscreva-se e compartilhe nosso propósito! Será um prazer ter a sua colaboração! Pela sua audiência, muito obrigado e até a próxima!

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About the Podcast

Hextramuros Podcast
Vozes conectando propósitos, valores e soluções.
Ambiente para narrativas, diálogos e entrevistas com operadores, pensadores e gestores de instituições de segurança pública, no intuito de estabelecer e/ou ampliar a conexão com os fornecedores de soluções, produtos e serviços direcionados à área.
Trata-se, também, de espaço em que este subscritor, lastreado na vivência profissional e experiência amealhada nas jornadas no serviço público, busca conduzir (re)encontros, promover ideias e construir cenários para a aproximação entre a academia, a indústria e as forças de segurança.

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Washington Clark Santos

Produtor e Anfitrião.
Foi servidor público do estado de Minas Gerais entre 1984 e 1988, atuando como Soldado da Polícia Militar e Detetive da Polícia Civil.
Como Agente de Polícia Federal, foi lotado no Mato Grosso e em Minas Gerais, entre 1988 e 2005, ano em que tomou posse como Delegado de Polícia Federal, cargo no qual foi lotado em Mato Grosso - DELINST -, Distrito Federal - SEEC/ANP -, e MG.
Cedido ao Ministério da Justiça, foi Diretor da Penitenciária Federal de Campo Grande/MS, de 2009 a 2011, Coordenador Geral de Inteligência Penitenciária, do Sistema Penitenciário Federal, de 2011 a 2013.
Atuou como Coordenador Geral de Tecnologia da Informação da PF, entre 2013 e 2015, ano em que retornou para a Superintendência Regional em Minas Gerais, se aposentando em fevereiro de 2016. No mesmo ano, iniciou jornada na Subsecretaria de Segurança Prisional, na SEAP/MG, onde permaneceu até janeiro de 2019, ano em que assumiu a Diretoria de Inteligência Penitenciária do DEPEN/MJSP. De novembro de 2020 a setembro de 2022, cumpriu missão na Secretaria Especial de Previdência e Trabalho, no Ministério da Economia e, posteriormente, no Ministério do Trabalho e Previdência.
A partir de janeiro de 2023, atua na iniciativa privada, como consultor e assessor empresarial, nos segmentos de Inteligência, Segurança Pública e Tecnologia.