FACÇÕES CRIMINOSAS NO BRASIL: COMO A HISTÓRIA MOLDA O PRESENTE. Capítulo 1
Na primeira parte da entrevista com JOEL PAVIOTTI, criador do canal no YouTube “Iconografia da História”, nosso convidado nos ajuda a entender as raízes e as dinâmicas da expansão de facções criminosas no Brasil, discorrendo sobre marcos históricos, as estratégias de atuação dessas organizações e sua relação com a ausência do Estado, além de discutir as conexões internacionais que ampliam o alcance dessas estruturas criminosas.
Saiba mais!
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- JORGE RAFAAT TOUMANI
- SciELO Brasil - Das Comissões de Solidariedade ao Primeiro Comando da Capital em São Paulo Das Comissões de Solidariedade ao Primeiro Comando da Capital em São Paulo
- Casa de Custódia de Taubaté – Wikipédia, a enciclopédia livre
- Instituto Penal Cândido Mendes – Wikipédia, a enciclopédia livre
- SEVIJU
- ICONOGRAFIA DA HISTÓRIA
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Transcript
Honoráveis Ouvintes! Sejam muito bem-vindos a mais um episódio do Hextramuros! Sou Washington Clark dos Santos, seu anfitrião! No conteúdo de hoje, temos a honra de receber Joel Paviotti, um pesquisador apaixonado pela história e seus impactos no presente, criador do canal no YouTube “Iconografia da História”, um espaço incrível no qual ele utiliza o poder da narrativa e da análise histórica para discutir temas da segurança pública e do crime organizado no Brasil com profundidade e clareza! Neste capítulo, nosso convidado nos ajuda a entender as raízes e as dinâmicas da expansão de facções criminosas no Brasil, discorrendo sobre marcos históricos, as estratégias de atuação dessas organizações e sua relação com a ausência do Estado, além de discutir as conexões internacionais que ampliam o alcance dessas estruturas criminosas. Confira conosco e entenda melhor como história, sociedade e segurança pública estão interconectadas. Joel, é um prazer tê-lo no Hextramuros! Saudando-o com as boas-vindas, gostaria que você se apresentasse para os nossos ouvintes, falando um pouquinho sobre sua trajetória e atuação profissional no estudo do crime organizado no Brasil:
JOEL PAVIOTTI:Fui convidado para falar aqui, no Hextramuros, sobre organizações criminosas e segurança pública. Agradeço o convite do Clark e agradeço todos os ouvintes que estão em suas casas tirando um tempinho para ouvir a gente falar aqui. Eu tenho 36 anos de idade, sou formado em Ciências Sociais pela Instituição Unicamp, Universidade Estadual de Campinas. Tenho especialização em Ensino de Ciência, História e Sociedade pela Universidade Federal do ABC. Faço parte do Grupo de Pesquisa em Segurança, Violência e Justiça, o SEVIJU, também na Universidade Federal do ABC. Sou mestrando em Ciência Política, também na Universidade Federal do ABC, orientado pela Camila Nunes Dias, uma grande autora que pesquisa redes criminosas há muitos anos! Pesquiso, especificamente, o processo de formação do PCC dentro das penitenciárias paulistas. Há muitos anos, pelo menos uma década, eu sou pesquisador da área de Segurança Pública, Violência e Redes Criminosas, e, também, sou proprietário do canal Iconografia da História, um dos maiores canais de segurança pública e história do crime organizado do Brasil! Também, sou roteirista, apresentador e, muitas vezes, diretor dos vídeos e dos documentários que nós produzimos. A nossa ideia é levar para a grande parte do público, uma divulgação científica sobre as principais pesquisas na área de segurança pública, crime organizado, polícia e todos os temas que abrangem essa grande área da ciência - segurança pública!
Anfitrião:Na sua visão, quais foram os principais fatores que impulsionaram a expansão do crime organizado no Brasil nas últimas décadas? Poderia destacar marcos históricos ou contextos socioeconômicos relevantes?
JOEL PAVIOTTI:Vamos, primeiro, para o contexto histórico e socioeconômico que a gente possa falar relevante. Vamos fazer um recorte aqui para falar sobre a fundação do Comando Vermelho e do PCC - Primeiro Comando da Capital -, porque vocês vão ver que, mais para frente, essas duas organizações vão dar origem a várias outras organizações que vão atuar em vários estados. Tanto o PCC como o Comando Vermelho, surgem de contatos dos presos com direitos e com ideias políticas. O Comando Vermelho nasce no Cândido Mendes, um presídio que tinha como apelido “Caldeirão do Diabo”, nas piores condições possíveis de se pagar a pena - muito indigno o local inclusive -, e a ditadura militar passa a enquadrar presos políticos no mesmo artigo que os presos comuns, que era o artigo que tinha dentro da Lei de Segurança Nacional, em que assalto a banco e expropriação bancária eram tratados da mesma forma. Essa convivência entre presos políticos e presos comuns tinha como objetivo que os presos comuns absorvessem os presos políticos, mas, na verdade, o que aconteceu foi um contato entre eles e uma situação transformadora: os presos comuns passaram a aprender a se organizar e a aprender a cobrar e a entender os próprios direitos que existiam por eles serem cidadãos e estarem sob custódia do Estado. Em 78, 79, 80, quando está se consolidando esse processo de anistia, os presos políticos saem dali da prisão, e os presos entendem que, na verdade, eles são os verdadeiros oprimidos da situação, e eles acabam saindo da cadeia no início dos anos 80 e implantando esse espírito de grupo para fora. E eles acabam juntando as forças deles, que eram forças do mundo do crime, e adotam um sistema de tráfico de drogas nos morros, tomam esses morros, implantam uma série de direitos nesses morros e fazem um trabalho assistencialista dentro dessa ideologia que nasce ali com o contato com os presos políticos. O PCC não foi diferente! É um processo bem semelhante, na verdade, mas, é um pouco depois. O PCC nasce em mil novecentos e noventa e três, na Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, mas ele é resultado de um processo que já vinha bem antes. Em mil novecentos e oitenta e dois, mil novecentos e oitenta e três, começa a se discutir a LEP - Lei de Execução Penal e o estado de São Paulo cria as Comissões de Solidariedade, que eram presos e famílias de presos que discutiam legislação para formar as leis de execução penal - existiam essas discussões dentro dos estados para depois se levar para o âmbito federal - e vários desses presos do sistema estadual paulista participaram dessas discussões. O Misael, que é o criador do estatuto do PCC em mil novecentos e noventa e três, participou das comissões de solidariedade e entendeu como os direitos e a política funcionavam! Entendeu os direitos dos presos e, de certa forma, ajudou a formar a Lei de Execução Penal, que é a legislação que gerencia como será o pagamento da pena dentro do sistema penitenciário. Então, vocês percebem que ambas as organizações estavam sob a vigia do Estado, e elas tiveram contato com os direitos que eram escritos para elas, mas não eram respeitados. E, uma vez que você enxergou a luz desses direitos, o processo nunca mais é o mesmo! Em contexto socioeconômico, a gente pode falar que essas pessoas que organizaram as facções criminosas, a princípio, eram pessoas pobres, miseráveis, frutos de uma desigualdade social e que fizeram uma escolha, condicionadas muitas vezes por isso, ou não, de entrar para o mundo do crime, foram encarcerados e, dentro da prisão, precisavam viver numa guerra de todos contra todos! As facções criminosas, dentro desse contexto, passaram a organizar o cumprimento de pena ou organizar negócios ou uma dinâmica do mundo do crime que fizesse com que algumas mortes fúteis cessassem, que uma bagunça muito grande no mundo do crime cessasse, e impuseram, de certa forma, uma “ética”. Não confundir com moralidade, mas, uma “ética no mundo do crime”. Criaram o que a gente chama de “lado certo da vida errada”, ou seja, um tipo de “ética”, estatuto que o “ladrão” que segue, passa a fazer parte de um grupo maior, pegando uma espécie de selo e placa de que ele realmente é bandido! E, entrando para a facção, ele recebe o status de ser faccionado que, dentro do sistema penitenciário e, na rua, goza de um grande status! Eu acredito que esse seja um contexto socioeconômico e o contexto político e, aí, para falar sobre a expansão, a gente precisa falar da continuidade do sistema penitenciário estadual, sistemas penitenciários estaduais, como locais onde são propícios à criação e à proliferação dessas organizações criminosas! O PCC e o Comando Vermelho se expandiram dentro e fora das cadeias. O PCC passa a se expandir a partir dos anos dois mil! A gente tem uma troca de comando ali, em dois mil e três, dois mil e quatro, em que o Marcola toma o poder expulsando os fundadores do PCC e começa uma expansão ainda maior, porque eles passam a organizar rebeliões gigantescas, sincrônicas no sistema penitenciário, o que faz com que o Estado tenha que conceder os direitos que já estavam garantidos a eles. Mas, as facções em outros estados começam a crescer a partir do momento em que o PCC e o Comando Vermelho dominam as rotas de tráfico de drogas. Em cada estado que essas duas facções vão chegando, outras facções vão sendo formadas, ou para receber a cocaína desses dois grupos, ou para guerrear e definir quem vai ficar com o varejo nos estados. A expansão das facções criminosas tem a ver com dois fenômenos diferentes: a continuidade da política carcerária nos estados, de não garantir a mínima dignidade e fazer com que seja mais fácil das facções cooptarem pessoas, porque elas acabam organizando o ambiente da cadeia; e por conta do tráfico de drogas, que por serem faccionados de um grupo muito forte, conseguiram construir rotas e construir uma logística que possibilitou o aumento do tráfico de drogas e a entrada de muito dinheiro para essas organizações!
Anfitrião:Como o crime organizado tem se estruturado em termos de estratégias e dinâmicas territoriais? Existe alguma relação direta entre a presença dessas organizações e a ausência do Estado em determinadas áreas?
JOEL PAVIOTTI:Existe uma diferença, trazendo de novo as facções criminosas de São Paulo e do Rio de Janeiro para a gente poder entender todas as outras, porque são muitas, são mais de 70 hoje, então, vamos falar das que são mais influentes do ponto de vista de ditar regras e tendências: o PCC tem um controle territorial mais dissimulado, enquanto o Comando Vermelho, as organizações criminosas do Rio de Janeiro, elas adotaram o que nós chamamos de “franquia de ocupação” e o domínio de território que eles fazem é um domínio de território mais patente, mais ostensivo! Você vê pessoas armadas controlando o território, controlando a vida das pessoas, o tempo todo, com homens armados ali! E essas organizações criminosas, elas acabam entrando em um local que não existe vácuo. Não há vácuo de poder! E onde o Estado não está, algum poder vai adentrar. No caso das facções, é o poder das armas! Então, quanto menos Estado, maior a possibilidade de que as facções criminosas adentrem nessas localidades e passem a ditar as regras dessa comunidade. E uma vez essas facções inseridas dentro desse território, fica muito difícil de você tirá-la “a base da bala”! Os governos estaduais tentam fazer isso há muitos anos, e não têm conseguido êxito nessa situação. Então, sim! Há uma relação direta entre as organizações e a ausência do Estado, principalmente no que tange o controle territorial, pois, se o Estado não controla a área, como eu disse, não há vácuo de poder e essas áreas serão controladas por outros grupos. Os grupos mais organizados com capacidade de entrar nesse possível vácuo, dessa possível não presença do Estado, que criaria um vácuo, mas ele não existe, seriam as facções criminosas e organizações que se proliferam por todo o nosso país! Primeiro em São Paulo e no Rio de Janeiro, como eu disse, mas, hoje, praticamente todos os estados têm pelo menos duas facções criminosas que brigam, guerreiam por controles territoriais que antes, e teoricamente, deveriam ser do Estado!
Anfitrião:O Brasil tem sido um ponto de destaque no tráfico internacional de drogas e armas. Como essas conexões transnacionais impactam a atuação das organizações criminosas dentro do país?
JOEL PAVIOTTI:Eu acho que aqui a gente precisa de uma explicação um pouco maior e mais detalhada. Então, eu vou ficar um pouquinho mais nessa pergunta: o Brasil, sim, tem sido ponto de destaque no tráfico internacional de drogas e armas. E tem uma história por trás disso daí. A partir de dois mil e dez, o Primeiro Comando da Capital cria um setor chamado Sintonia do Progresso, que era um setor responsável por criar uma logística de tráfico de drogas para o Primeiro Comando da Capital. O Comando Vermelho já tinha as lideranças e os agentes, personagens que saíam do Rio de Janeiro e iam até o Paraguai para buscar a cocaína e distribuir no estado. O PCC ainda não tinha feito esse processo. O PCC se une ao Comando Vermelho em um consórcio, vão até o Paraguai, em dois mil e dezesseis, e tiram a vida do Jorge Rafaat Toumani, o antigo chefão da fronteira, que era bastante importante e segurava e controlava a distribuição de droga no atacado. Para entender melhor essa situação; o Paraguai sempre foi um entreposto entre os países andinos e, o Brasil, é o país que separa esses países andinos da Europa! O maior país, a maior costa da América do Sul! O PCC e o Comando Vermelho se unem, tiram a vida do Jorge Rafa Omani, e o Comando Vermelho domina a Rota Solimões, que é uma rota que transporta drogas pela Amazônia, pela Floresta Amazônica, enquanto o PCC domina o que nós chamamos de Rota Caipira, que sai do Paraguai, passa pelo Mato Grosso do Sul, pelo Mato Grosso, pelo Paraná, pára no Noroeste Paulista, depois vai para o Porto de Santos, onde é o local que exporta a cocaína para o Golfo da Guiné ou para a Europa. E como isso altera, impacta e traz destaque ao tráfico de droga brasileiro e cria uma conexão de tráfico de armas internacional? Porque é uma atividade que dá muito dinheiro, muito lucrativa! Especialistas dizem que o PCC e o Comando Vermelho, pegam na Bolívia um quilo de cocaína de mil a três mil dólares e vende esse quilo de cocaína no atacado para a Europa ou no Golfo da Guiné a 30 mil dólares, 40 mil, 50 mil. Dependendo da legislação do país, se for mais rígida com droga, pode chegar até 100 mil o quilo, na Europa! E o PCC já ficou provado que tem membros batizados nos Estados Unidos, na Inglaterra, no Canadá, até na Suíça! Já foram identificadas, também, transações do Primeiro Comando da Capital com a máfia sérvia, com a máfia italiana, inserindo cocaína na Bélgica para distribuir nos países europeus, no Leste Europeu também! Estima-se que o PCC tenha movimentado mais de um bilhão no ano, que é muito dinheiro! Enquanto o PCC se destacou pelo tráfico de drogas e armas internacionalmente, o Comando Vermelho ficou com a parte mais interna de distribuição no Norte e no Nordeste. Após esse controle dessas duas rotas, onde o PCC e o Comando Vermelho chegavam, facções regionais eram formadas, ou as pessoas se batizavam no PCC ou no Comando Vermelho. Vocês devem se recordar que dois mil e dezesseis, dois mil e dezessete e dois mil e dezoito, virou uma guerra em vários estados, tendo massacres em várias unidades prisionais: Em Altamira, no Pará, em vários outros lugares! Fez parte do processo de expansão do tráfico nacional e internacional, organizado tanto pelo PCC quanto pelo Comando Vermelho. E quando entra muito dinheiro do tráfico de drogas, a atuação das organizações acaba abraçando mais atividades. É mais dinheiro, é mais poder! O PCC entrou numa fase de infiltração em que ele lava dinheiro, está mais próximo de políticos, de empresários famosos, enquanto o Comando Vermelho tem usado o dinheiro no tráfico de drogas e impactado e aumentado a sua atuação no mercado da droga no Brasil. Esse dinheiro, vindo desse tráfico nacional e também internacional, tem patrocinado uma guerra no Rio de Janeiro, pois o Comando Vermelho tem invadido territórios com esse dinheiro. Porque é dinheiro para comprar drogas! Para comprar mais drogas! Para comprar mais armas! Para equipar esses soldados armados para essa guerra, essa briga de território que ocorre no Rio de Janeiro. A tendência é só aumentar, porque, cada vez que entra mais dinheiro, reforça-se mais a organização, o poder de fogo, o poder de invasão e o poder pelo poder! O PCC já está em um período de infiltração que cresce seus membros e atores ficam cada vez mais ricos. E dinheiro é poder! Por isso, o tráfico internacional e nacional de drogas e armas feito por essas duas organizações e replicado por organizações de outros estados, tem causado um impacto gigantesco na segurança pública brasileira e na atuação dessas próprias organizações. Com dinheiro - e o tanto de dinheiro que entra que é muito - as dinâmicas dessas organizações são modificadas, são incrementadas e ficam cada vez mais poderosas no cenário nacional e também internacional!
Anfitrião:Honoráveis Ouvintes! Interrompemos aqui a primeira parte desta entrevista. Sou Washington Clark dos Santos, seu anfitrião! Converso com Joel Paviotti, pesquisador e criador do canal Iconografia da História, abordando sobre as origens e dinâmicas da expansão do crime organizado no Brasil. No próximo episódio do Hextramuros, em sequência, continuaremos nesta trilha explorando temas como o papel do sistema prisional, o impacto da tecnologia e os efeitos diretos do crime organizado nas comunidades mais vulneráveis, culminando com propostas e reflexões sobre como podemos enfrentar esse desafio de forma concreta.
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