INTELIGÊNCIA E INVESTIGAÇÃO CRIMINAL: LIMITES, DISTINÇÕES E DESAFIOS.
Saiba mais!
- JuISPRUDENCIA - INFILTRAÇAO POLICIAL
- Tema 990 - Temas com Repercussão Geral do STF
- Operação Faktor – Wikipédia, a enciclopédia livre
- Operação Satiagraha – Wikipédia, a enciclopédia livre
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Transcript
Honoráveis Ouvintes! Sejam muito bem-vindos a mais um episódio do Hextramuros! Sou Washington Clark dos Santos, seu anfitrião! No conteúdo de hoje, temos a honra de receber Felipe Scarpelli, Analista de Risco e de Decisão, atualmente, Adido Policial Federal na Embaixada do Brasil, no México.
Scarpelli domina com profundidade e autoridade temas que tratam das convergências, limites e desafios entre as atividades de inteligência e investigação criminal, assunto fundamental para quem atua ou se interessa pela segurança pública e pela construção de políticas institucionais eficazes e legalmente amparadas.
Em suas análises, nosso convidado nos alerta para os riscos práticos e conceituais de confundir as funções de inteligência voltada à produção de conhecimento estratégico, antecipação e apoio à decisão com a investigação criminal, que, por sua vez, está sujeita a um rigoroso regramento jurídico e à finalidade de responsabilização penal.
Assim, vamos explorar com ele essas ideias e entender como as distorções nesse entendimento podem gerar ilegalidades e perdas estratégicas para as instituições.
Scarpelli; agradecendo a sua gentileza em participar deste programa, o saúdo com as boas-vindas. Satisfação tê-lo conosco!
Meu caro, quais são, na sua visão, os principais pontos de convergência entre as atividades de inteligência e investigação criminal que levam muitos profissionais a confundirem essas funções no dia-a-dia institucional?
CONVIDADO:Bom, Clark! Primeiramente, eu gostaria de agradecer o convite em participar desse programa! É, realmente, uma satisfação muito grande poder discutir sobre um tema tão importante quanto esse, a atividade de inteligência no contexto da investigação! Com relação à pergunta, eu vejo que a principal confusão entre a atividade de inteligência e a persecução penal nasce justamente do fato de que ambas lidam com a mesma matéria-prima - informações sobre o crime, o criminoso, o modus operandi e, eventualmente, as vulnerabilidades exploradas pelo criminoso - esses elementos são muitas vezes indissociáveis e é aí que as fronteiras começam a se embaralhar! Por isso, é comum encontrar sobreposições e até distorções entre os órgãos responsáveis por investigar e que também cumprem seu papel na atividade de inteligência.
Contudo, é fundamental entender: embora compartilhem dados e objetivos parecidos, inteligência e investigação operam com lógicas, finalidades e metodologias! Reconhecer essas diferenças é essencial para que cada uma cumpra seu papel com eficácia, sem atropelos, sem confusões normativas. Investigação é, na verdade, uma atividade fim! Ela tem a natureza executiva! E, a inteligência, é a atividade meio com sua natureza consultiva!
ANFITRIÃO:Em análises e manifestações, você menciona que a confusão conceitual entre inteligência e investigação pode gerar riscos de ilegalidade na produção de provas. Poderia detalhar um exemplo prático em que isso já tenha ocorrido ou possa ocorrer?
CONVIDADO:Há inúmeras operações que foram anuladas devido a essa confusão entre as atividades de investigação e de inteligência. Eu vou citar algumas aqui, mas há outras inúmeras. Um bom exemplo, para ilustrar esse desafio da fronteira entre inteligência e investigação, é a Operação Factor, também conhecida como Operação Boi Barrica, que foi conduzida à época pela Polícia Federal. Essa operação começou com um relatório de inteligência financeira, o RIF, do COAF. Ele identificou movimentações financeiras atípicas do investigado e, a partir exatamente desse relatório, foi decretada a quebra de sigilo fiscal desses investigados. Ocorre que por se tratar de um relatório de inteligência financeira, ele demonstra uma atipicidade e não uma ilicitude, em princípio. E nesse contexto, o STJ considerou que a decisão judicial que autorizou essa quebra estava mal fundamentada, exatamente porque ele se baseava exclusivamente no RIF, sem suporte de diligências investigativas. Para o STJ, esse uso isolado do relatório acabou por configurar um instrumento de devassa generalizada - o que a gente sabe - viola o devido processo legal! Essa história especificamente do RIF, ao longo dos anos, teve muitas divergências! Recentemente, o STF, com o Tema Novecentos e Noventa, da Repercussão Geral, firmou a tese de que o compartilhamento de informações pelo COAF com o Ministério Público, sem autorização judicial, é constitucional, mas tem que respeitar os limites impostos pela lei de lavagem de dinheiro, a (Lei) nove mil, seiscentos e treze de noventa e oito. Ou seja, o compartilhamento pode ocorrer, mas o uso da informação tem algumas regras! Apesar disso, o STF também deixa claro que o RIF, por si só, ele não serve como prova condenatória. Como comentei, ele aponta atipicidades, não ilicitudes! E, portanto, ele deve ser corroborado por outras provas obtidas de maneira regular durante a investigação. Mas o cerne da discussão é, justamente, na diferença de finalidade entre atividade de inteligência e investigação. A investigação criminal busca apurar a autoria e materialidade de um determinado crime. Já, a atividade de inteligência, tem como foco assessorar o processo decisório, identificando riscos, padrões ou comportamentos atípicos.
E nesse sentido, um relatório de inteligência financeira não comprova um crime. Ele levanta uma suspeita qualificada, que pode ou não justificar uma investigação mais aprofundada. Confundir essas finalidades é abrir espaço para abusos e nulidades de processos! Ou seja; é importante ter muito bem definida exatamente essa fronteira e, também, esses pontos comuns entre inteligência e investigação! Outras operações seguem nessa mesma linha, como, por exemplo, a Operação Satyagraha. O STJ, à época, anulou todos os atos da operação por entender que a participação de um agente da Agência Brasileira de Inteligência na operação da Polícia Federal, violou os princípios constitucionais da legalidade e impessoalidade, sobretudo do devido processo legal, a partir do momento em que um agente de inteligência tem como atribuição produzir conhecimento para assessorar o processo decisório, e não na produção de provas!
Eu vou citar mais uma operação aqui, por exemplo, a que ocorreu da Força Nacional de Segurança Pública, na época daquelas grandes manifestações, onde um policial da Força teria infiltrado nessas manifestações e, a partir disso, obtido diversos dados e conhecimentos que foram utilizados como prova. Ocorre que a lei do crime organizado define muito bem que infiltração é uma técnica especial voltada para persecução criminal! Mais! Vai além! Ela precisa de autorização judicial para tanto! Essa questão da infiltração, por mais que a atividade de inteligência a tenha nas suas doutrinas, especificando que o acompanhamento do alvo, ele não pode ser confundido e muito menos ir de encontro à legislação na medida em que a gente considera infiltração quando o agente adquire a confiança daquele alvo. E, portanto, todos os atos dessa investigação também foram anulados exatamente por conta dessa confusão entre inteligência e investigação.
ANFITRIÃO:Quais prejuízos estratégicos as instituições enfrentam quando reduzem a inteligência a uma mera função operacional ou a confundem com a investigação criminal?
CONVIDADO:Eu vejo que é precisamente esse o ponto! A grande vocação da atividade de inteligência é atuar em seu nível estratégico, quando órgãos a utilizam no contexto operacional. É aí que ocorre essa aproximação da inteligência com a investigação, sobretudo quando se vale de técnicas especiais de busca do dado negado. Esse é um ponto bastante interessante, porque os órgãos de investigação se valem muitas vezes da nomenclatura inteligência para produzir prova! Esse é o ponto das distorções que ocorrem quando a polícia judiciária se vale de técnicas de inteligência com as técnicas especiais de investigação.
ANFITRIÃO:Na sua experiência como analista de decisão e de risco, que medidas práticas você considera essenciais para as organizações mitigarem essas distorções e garantirem o cumprimento das finalidades próprias de cada atividade?
CONVIDADO:A minha experiência mostra que há ainda uma necessidade de sensibilização dos gestores com relação ao ganho que a atividade de inteligência pode oferecer, inclusive para as investigações, mas não produzindo provas, orientando essas investigações. E aí eu vejo que é preciso regulamentar as operações de inteligência! Não tem uma regulamentação! Ou seja; as técnicas operacionais devem ter previsão legal expressa! Outro ponto que eu acho também importante é definir as excludentes de ilicitude e publicidade para as ações da inteligência!
ANFITRIÃO:Afirmas que a inteligência não deve ser vista apenas como um instrumento para apoiar operações, mas sim como atividade voltada à antecipação e apoio à decisão estratégica Como as instituições podem valorizar e incorporar melhor essa perspectiva no seu planejamento?
CONVIDADO:Eu vejo a grande vocação da inteligência no seu nível tático estratégico e talvez até no seu nível político! E por isso ela não deve ser vista apenas como um instrumento para apoiar operações! Operações, aqui, no sentido de investigação! A investigação é eminentemente uma técnica reativa, ou seja; ela atua após o fato. No enfrentamento ao crime, especialmente aquele de alta complexidade, não basta apenas reagir após os fatos! É preciso antecipar-se a eles! E, para isso, é necessário, mais do que esses métodos tradicionais de investigação, esse binômio contenção-repressão! É preciso compreender a lógica oculta da atividade criminosa, enxergar o que está por trás das aparências e reconhecer as ameaças antes que elas se concretizem. Essa é a essência da inteligência estratégica, uma atividade que não busca apontar culpados ou reunir provas para um processo judicial, como faz a investigação criminal, mas sim fornecer conhecimento qualificado para apoiar decisões de alto impacto.
Trata-se de um trabalho de bastidor, mas com um profundo alcance, porque ela permite que o Estado identifique os riscos, visualize as vulnerabilidades, e dando oportunidade de se antecipar a situações que poderiam gerar danos severos à sociedade! Então, enquanto a investigação olha para o passado e busca reconstruir um crime já ocorrido, a inteligência atua no presente com os olhos voltados para o futuro! Ela assessora, ela antecipa, ela prepara o Estado! Por isso, em vez de tratá-lo como um acessório da investigação, o Estado precisa se apropriar efetivamente, com seriedade e estrutura, dessa função estratégica. Em tempos de ameaças difusas e redes criminosas cada vez mais sofisticadas, a diferença entre agir e apenas reagir é que pode definir o sucesso ou fracasso de uma política pública de segurança!
ANFITRIÃO:Mirando o futuro, que desafios você acredita que as instituições brasileiras ainda precisam superar para amadurecerem a relação e a complementaridade entre inteligência e investigação?
CONVIDADO:Essa é a grande pergunta! Os desafios para que as instituições brasileiras superem e amadureçam com relação a essa complementariedade entre a inteligência e a investigação. Eu vejo, o principal é a sensibilização dos gestores com relação ao ganho efetivo que uma inteligência no contexto estratégico pode oferecer. Mas por outro lado, os analistas de inteligência também não fazem relatórios úteis, assessoráveis, que sejam aplicáveis! Muitos gestores ainda não compreendem plenamente o potencial estratégico que a inteligência oferece! Enxergam-na como um apêndice da investigação ou como algo meramente burocrático. E isso se reflexa nas doutrinas de inteligência, por exemplo e, também, limita sua aplicação e impede que ela seja usada para aquilo que tem de mais valioso: antecipar risco, orientar decisões e prevenir crises! A gente muitas vezes dá maior atenção em resolver problema do que tratar risco, mas ao mesmo tempo também a gente precisa olhar para dentro. Quem está operando a inteligência precisa de formação específica, visão crítica, compreensão clara de sua missão institucional. Sem isso, a atividade se reduz a processos automáticos, desvinculados das reais necessidades decisórias! E outro problema que eu vejo que é preciso vencer é essa lógica da gestão baseada em metas imediatistas, ou seja, prender mais, apreender mais - drogas, armas - mostrar números, índices de produtividade. Essa é uma abordagem reativa! Mas, a inteligência, nos convida a um outro ritmo, o da reflexão estratégica, da ação planejada, do investimento em soluções duradouras! Se quisermos realmente amadurecer a relação entre inteligência e investigação, é preciso romper com esse imediatismo e construir uma cultura institucional que valorize o pensar antes de agir. Com gestores, claro, conscientes e os operadores devidamente preparados.
ANFITRIÃO:Meu caro, seguindo para o final de nossa conversa, repriso meus agradecimentos por compartilhar conosco sua análise tão clara e necessária sobre a forma como essas atividades, inteligência e investigação criminal, são compreendidas e aplicadas nas instituições! Deixo este espaço para suas considerações finais. Grande abraço!
CONVIDADO:Bom, agradecendo mais uma vez o convite, eu gostaria de deixar aqui as considerações finais, resumindo um pouco de tudo o que foi dito: vejo que a eficácia das polícias do futuro passa pela capacidade de transformar dados em conhecimento estratégico, indo além daquela resposta imediata e mirando a prevenção. A inteligência estratégica, então, surge como uma ferramenta fundamental para orientar decisões, revelar conexões ocultas e antecipar as ameaças. Para isso, a gente precisa de gestores conscientes, operadores capacitados e estruturas voltadas à produção técnica de conhecimento, principalmente com base em métodos científicos e uma visão integrada! Combater o crime, hoje, com eficiência, não é apenas uma questão de força, é uma questão de inteligência! E é justamente nessa virada de chave, ou seja, do reativo para o estratégico, do empírico para o científico, que reside o verdadeiro futuro da segurança pública! Muito obrigado!
ANFITRIÃO:Honoráveis Ouvintes! Este foi mais um episódio do Hextramuros! Sou Washington Clark dos Santos, seu anfitrião! Acesse o website e saiba mais sobre nossos conteúdos! Inscreva-se e compartilhe este propósito! Será um prazer ter a sua colaboração! Pela sua audiência, muito obrigado e até a próxima!