Episode 145

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15th Aug 2025

O VALOR DA INTELIGÊNCIA FINANCEIRA NO SISTEMA PRISIONAL

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ANFITRIÃO:

Honoráveis Ouvintes! Sejam muito bem-vindos a mais um episódio do Hextramuros! Sou Washington Clark dos Santos, seu anfitrião!

Em um cenário em que organizações criminosas utilizam cada vez mais mecanismos sofisticados para lavar dinheiro e financiar suas operações, os presídios brasileiros acabam se tornando não apenas centros de custódia, mas também pontos estratégicos para a coordenação de atividades ilícitas. Essa realidade impõe enormes desafios às autoridades, desde a falta de integração entre órgãos de segurança até a necessidade urgente da modernização tecnológica e qualificação dos profissionais que atuam na linha de frente. Neste conteúdo, vamos explorar um tema que se tornou central para o enfrentamento ao crime organizado no Brasil, a inteligência financeira no sistema penitenciário.

Para nos ajudar a compreender melhor essas questões e apontar caminhos para o fortalecimento da segurança pública, recebemos hoje Carlos Pegoraro Nicolosso, policial penal da Secretaria de Estado da Justiça e Reintegração Social de Santa Catarina, Bacharel em ciências contábeis, especialista em gestão de administração pública, em inteligência policial, em inteligência competitiva e contra-inteligência corporativa e em prevenção e investigação de crimes digitais, autor do artigo "Inteligência financeira no sistema penitenciário. estratégias de combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento de organizações criminosas".

Na satisfação deste reencontro, Pegoraro, o saúdo com as boas-vindas e a gratidão por você aceitar a ilustrar este canal com a sua participação. Uma honra tê-lo conosco! Meu caro; para iniciarmos, você poderia contextualizar para os nossos ouvintes como a inteligência financeira pode ser uma aliada estratégica no combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do crime organizado, especificamente dentro dos presídios brasileiros?

CONVIDADO:

Claro! É um prazer participar e poder contribuir com esse debate tão necessário! A inteligência financeira, quando bem aplicada no sistema prisional, se transforma numa verdadeira linha de frente contra o crime organizado. E por aqui eu falo com a experiência de quem atua há mais de duas décadas diretamente nesse sistema, acompanhando de perto a evolução e também a sofisticação das práticas criminosas dentro e fora dos muros. Em termos práticos, a inteligência financeira consiste no monitoramento e na análise sistemática de fluxos de dinheiro com o registro de identificar padrões suspeitos, interdições patrimoniais e operações de lavagem de dinheiro. Quando trazemos essa lógica para o contexto prisional brasileiro, percebemos que ela é absolutamente estratégica porque muitas das grandes organizações criminosas como o PCC e o Comando Vermelho continuam operando e movimentando valores milionários a partir de dentro das cadeias. Essas organizações utilizam intermediários, os chamados laranjas, empresas de fachada, transações pulverizadas, criptomoedas e até plataformas de aposta online para lavar dinheiro. O sistema bancário tradicional ainda é usado, mas tem sido cada vez mais contornado com o uso de fintechs e ativos digitais justamente para dificultar o rastreamento. E é aí que a inteligência financeira mostra sua importância, ela permite mapear essa rede complexa de movimentações, identificar os verdadeiros beneficiários e romper com a base econômica que sustenta o crime.

O artigo que publiquei recentemente na Revista Brasileira de Execução Penal mostra que sem um sistema robusto de inteligência financeira, o Estado acaba atuando de forma reativa, sempre um passo atrás! Mas, com ferramentas como a análise de Big Data, inteligência artificial e a integração de instituições como o COAF, a Polícia Penal, a Receita Federal e o Ministério Público, a gente consegue antecipar movimentações, bloquear contas e desarticular essas redes. Em resumo, a inteligência financeira é o que permite transformar informações em ação! É o que conecta movimentações bancárias aparentemente inofensivas a uma liderança criminosa que está atrás das grades e é também o que dá à polícia penal um papel estratégico, não só como guardiã da segurança física dos presídios, mas como protagonista na luta contra o crime organizado em seu coração financeiro.

ANFITRIÃO:

No seu estudo, você identificou a ausência de um sistema integrado de rastreamento financeiro como uma das principais fragilidades institucionais. Quais seriam, na sua visão, os primeiros passos para superar essa lacuna?

CONVIDADO:

Essa pergunta é central para entender porque muitas vezes o Estado chega atrasado no combate à lavagem de dinheiro dentro do sistema prisional. De fato, um dos principais achados da minha pesquisa foi a constatação de que não existe hoje um sistema integrado e automatizado de rastreamento financeiro que conecte os diversos órgãos de controle e segurança, como o COAF, Polícia Penal e diversos outros órgãos! Essa fragmentação de dados gera ineficiência, porque cada órgão opera isoladamente, sem acesso imediato a informações que, se estiverem cruzadas, poderia apontar rapidamente para movimentações suspeitas. Na minha visão, os primeiros passos para superar essa lacuna passam por três diretrizes fundamentais. Primeiro: investir em interoperabilidade tecnológica, que significa desenvolver plataformas que permitam o compartilhamento seguro e, em tempo real, de informações estratégicas entre os órgãos de Estado. O modelo ideal é o que chamamos de Governo Orientado por Dados, onde a informação circula com agilidade e segurança. No segundo, é necessário padronizar os protocolos de comunicação e de análise financeira, inclusive, dentro das próprias administrações penitenciárias! Não adianta termos ferramentas tecnológicas se os agentes que as operam não têm a mesma linguagem operacional ou critério de alerta! A padronização facilita a cooperação de casos, a consolidação de inteligência e a tomada de decisão coordenada. E, terceiro, temos que pensar na formação continuada dos profissionais. especialmente daqueles que atuam na linha de frente, como os policiais penais. A inteligência financeira não é uma tarefa exclusiva de um setor técnico. Ela precisa fazer parte da cultura institucional! Um agente que sabe identificar um padrão de depósito suspeito ou um vínculo patrimonial estranho pode ser o ponto de partida de uma grande operação! Por fim, vale destacar que essa integração não depende apenas da tecnologia, depende também de vontade pública e articulação institucional. O crime organizado opera em rede. Se o Estado continuar agindo de forma compartimentalizada, nunca vai conseguir neutralizar essas organizações com a mesma eficiência. Portanto, o primeiro passo é entender que inteligência financeira não é um luxo, é uma necessidade estratégica para a segurança pública do Século 21.

ANFITRIÃO:

Outro ponto que você menciona no artigo é a falta de interoperabilidade entre órgãos de segurança, o que compromete as investigações financeiras. Quais seriam os principais entraves para essa integração e como podemos superá-los?

CONVIDADO:

Sem dúvida, a falta de interoperabilidade entre os órgãos de segurança pública é um dos principais gargalos que eu identifiquei ao longo da pesquisa! E é também algo que vivenciamos na prática todos os dias dentro do sistema penitenciário. Na essência, quando falamos de interoperabilidade, estamos falando da capacidade dos sistemas, das instituições e das pessoas de trabalharem juntas de maneira coordenada, compartilhando informações com segurança, agilidade e clareza. E hoje, infelizmente, isso ainda não é a regra no Brasil!

Os entraves para essa integração são de várias naturezas e eu posso destacar três principais: primeiro, o entrave tecnológico, onde os sistemas utilizados pela segurança pública, muitas das vezes, não conversam! São bases de dados fechadas, com padrões diferentes de codificação, sem conectividade ou sem o compatibilidade para cruzamento de informações em tempo real. Isso significa que informações valiosas que poderiam prevenir ou esclarecer crimes ficam presas em silos informacionais. É o caso, por exemplo, das transações bancárias de familiares de presos, que não são compartilhadas automaticamente com a inteligência penitenciária! Dois: entraves institucionais! Há também uma cultura de isolamento entre órgãos, muitas vezes marcada por desconfiança, disputa de competência ou ausência de protocolo formal de cooperação. Isso dificulta a construção de confiança mútua e reduz a fluidez das operações conjuntas. Em muitos casos, cada órgão acaba desenvolvendo o seu próprio sistema de inteligência sem dialogar com os demais, o que fragmenta a resposta estatal ao crime organizado! E, três: os entraves normativos! Muitas vezes a própria legislação não acompanha a necessidade da integração. Existem lacunas jurídicas que dificultam ou tornam morosos os processos de compartilhamento de dados sensíveis, especialmente quando envolvemos instituições financeiras, investigações sigilosas ou informações protegidas por lei. É preciso um marco legal mais claro que defina os parâmetros para uso dos dados em operações integradas. Na minha visão, a solução passa por um esforço coordenado em três frentes: Modernização tecnológica, com a criação de sistemas interconectados baseados em Big Data, inteligência artificial e protocolos unificados de acesso à informação; construção da governança institucional, com mesas permanentes de cooperação entre o sistema penitenciário, as polícias, o Ministério Público, o COAF e demais atores estratégicos; e a revisão legislativa, com a atualização do marco normativo para permitir a interoperabilidade de dados com a segurança jurídica, resguardando direitos fundamentais, mas sem paralisar a ação investigativa do Estado. Se o crime organizado opera como rede, a resposta do Estado também precisa ser em rede! E a inteligência financeira só será eficaz quando os órgãos de segurança pública atuarem como parte do mesmo sistema, não como ilhas isoladas.

ANFITRIÃO:

A regulamentação e fiscalização de ativos digitais tem sido cada vez mais discutidas no Brasil. Como você avalia o impacto das criptomoedas no contexto do crime organizado no sistema prisional e que tipo de regulação ou medida poderia mitigar os riscos?

CONVIDADO:

Essa é uma das questões mais complexas e, ao mesmo tempo, mais urgentes do nosso tempo! O uso de criptomoedas por organizações criminosas é uma realidade presente e não uma tendência futura! Hoje, essas organizações, tais como o PCC e Comando Vermelho, já utilizam ativos digitais como mecanismo de ocultação, transferência e blindagem patrimonial. O grande atrativo da criptomoeda para o crime é o seu grau de descentralização. E, em muitos casos de anonimatos, essas transações e blockchains não precisam passar por instituições bancárias convencionais, o que escapa ao mecanismo tradicional de rastreamento e notificação, como os que são utilizados pelo COAF. No artigo, eu acabo citando a Operação Hidra, que revelou o uso de fintechs e exchanges digitais por integrantes do PCC para lavagem de dinheiro do tráfico. Uma das fintechs investigadas, inclusive, era administrada por um policial civil!

Isso mostra o grau de infiltração e sofisticação dessas estruturas e também a fragilidade do mecanismo de controle! Dito isso, em dois mil e vinte e dois, foi aprovado o Marco Legal das Criptomoedas pela Lei número 14 mil, quatrocentos e setenta e oito, que representou um passo importante ao definir o que são ativos virtuais, quem são os prestadores de serviço e prever sanções para a prática abusiva ou ilícita. Mas essa legislação ainda é incipiente diante da velocidade com que o crime se adapta às novas tecnologias! Na minha avaliação, algumas medidas poderiam ajudar a mitigar os riscos. Primeiro; a obrigatoriedade da identificação completa, que é o Know Our Customer, que é o KYC, em plataformas de negociação de criptoativos, inclusive nas chamadas P2P onde, hoje, há pouca fiscalização! Integração obrigatória entre exchanges e unidades de inteligência financeira, como o COAF, para envio automático de relatórios de operações suspeitas, nos mesmos moldes que as instituições bancárias tradicionais; sandbox regulatório mais robusto, que permita ao Estado experimentar regras de controle mais avançadas em ambientes controlados antes de sua aplicação ampla, como já fazem países como, por exemplo, o Reino Unido; capacitação dos órgãos de segurança pública, inclusive dos policiais penais, para que seus quadros possam compreender o funcionamento dos ativos digitais e identificar transações suspeitas em seu tempo real; e, claro, a cooperação internacional, porque o crime que utiliza a criptomoeda não reconhece fronteiras! A atuação conjunta com entidades como Interpol, Europol, GAFI e o próprio UNODC é fundamental para rastrear transações que muitas vezes circulam por diversas jurisdições em minutos. Ou seja, a regulação não deve demonizar a tecnologia, mas precisa acompanhá-la e se antecipar aos seus riscos! O crime organizado já está na era digital. A resposta do Estado não pode ficar e continuar sendo analógica!

ANFITRIÃO:

Pegoraro; tanto quanto as anteriores, meu caro, muito importante essa sua reflexão sobre o impacto das criptomoedas no fortalecimento das organizações criminosas e os desafios que o Estado ainda enfrenta na regulação e fiscalização desse tipo de ativo digital.

Honoráveis Ouvintes! Nesta primeira parte da nossa conversa, percorremos pontos fundamentais para compreender como a inteligência financeira pode e deve se tornar um instrumento central no enfrentamento ao crime organizado dentro do sistema prisional. Nosso convidado nos mostrou com clareza como a ausência de um sistema integrado de rastreamento de movimentações financeiras A fragilidade na interoperabilidade entre os órgãos de segurança e a incipiente regulamentação dos ativos digitais dificultam, e muito, o trabalho de investigação e controle dentro e fora dos muros do cárcere. Mas a conversa não para por aqui!

Na próxima semana, daremos continuidade a este conteúdo abordando um ponto crucial, a modernização tecnológica necessária para transformar a realidade atual. Vamos falar sobre quais tecnologias podem ser incorporadas ao sistema penitenciário para permitir um rastreamento mais preciso, respostas mais ágeis e integração mais eficiente entre as instituições envolvidas. Sou Washington Clark dos Santos, seu anfitrião! O Hextramuros retorna na próxima sexta-feira com a sequência deste diálogo necessário e revelador com Carlo Pegoraro Nicolosso. Acesse nosso website! Saiba mais, inscreva-se e compartilhe nosso propósito! Será um prazer ter a sua colaboração! Pela sua audiência, muito obrigado e até a próxima!

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About the Podcast

Hextramuros Podcast
Vozes conectando propósitos, valores e soluções.
Ambiente para narrativas, diálogos e entrevistas com operadores, pensadores e gestores de instituições de segurança pública, no intuito de estabelecer e/ou ampliar a conexão com os fornecedores de soluções, produtos e serviços direcionados à área.
Trata-se, também, de espaço em que este subscritor, lastreado na vivência profissional e experiência amealhada nas jornadas no serviço público, busca conduzir (re)encontros, promover ideias e construir cenários para a aproximação entre a academia, a indústria e as forças de segurança.

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Washington Clark Santos

Produtor e Anfitrião.
Foi servidor público do estado de Minas Gerais entre 1984 e 1988, atuando como Soldado da Polícia Militar e Detetive da Polícia Civil.
Como Agente de Polícia Federal, foi lotado no Mato Grosso e em Minas Gerais, entre 1988 e 2005, ano em que tomou posse como Delegado de Polícia Federal, cargo no qual foi lotado em Mato Grosso - DELINST -, Distrito Federal - SEEC/ANP -, e MG.
Cedido ao Ministério da Justiça, foi Diretor da Penitenciária Federal de Campo Grande/MS, de 2009 a 2011, Coordenador Geral de Inteligência Penitenciária, do Sistema Penitenciário Federal, de 2011 a 2013.
Atuou como Coordenador Geral de Tecnologia da Informação da PF, entre 2013 e 2015, ano em que retornou para a Superintendência Regional em Minas Gerais, se aposentando em fevereiro de 2016. No mesmo ano, iniciou jornada na Subsecretaria de Segurança Prisional, na SEAP/MG, onde permaneceu até janeiro de 2019, ano em que assumiu a Diretoria de Inteligência Penitenciária do DEPEN/MJSP. De novembro de 2020 a setembro de 2022, cumpriu missão na Secretaria Especial de Previdência e Trabalho, no Ministério da Economia e, posteriormente, no Ministério do Trabalho e Previdência.
A partir de janeiro de 2023, atua na iniciativa privada, como consultor e assessor empresarial, nos segmentos de Inteligência, Segurança Pública e Tecnologia.